Como intelectual, lia eu certa vez uma história de Walt Disney, em que Zezinho, Huguinho e Luisinho, escoteiros mirins, tentavam fazer sua boa ação do dia. Assim, pegaram uma senhora idosa pelo braço e a fizeram atravessar a rua, num trânsito bastante pesado. A senhora ficou furiosa. Não queria atravessar a rua. Conseguira vir do lado para onde os escoteiros a levaram, e eles a fizeram retornar! Ajudantes trapalhões!
A história me voltou à mente ao reler um dos livros que arrumava em minha biblioteca. Um livro com análises sociológicas sobre a igreja, com várias receitas para salvá-la. Alguns dos temas versavam sobre “caminhos alternativos”, “reflexões e propostas”, “uma proposta para o futuro da igreja”, “novos paradigmas para viabilizar a igreja”, etc. Segundo os comentaristas, a igreja está doente, e seus judiciosos conselhos poderiam revitalizá-la.
Queriam salvá-la. Lembrei-me quando cheguei ao Seminário do Sul, com 19 para 20 anos, e ouvia os veteranos conversarem sobre o futuro da igreja. O marxismo e o existencialismo avolumavam-se como uma onda. Era a época da teologia da morte de Deus, de Altizer, Hamilton, Adolphs, Van Buren, e a igreja estava para morrer. Um colega, bem incisivo, não dava dez anos para as igrejas fecharem as portas. Naquela época, era sinal de intelectualidade criticar a igreja e vaticinar seu fim. Hoje, além disso, parece ser sinal de espiritualidade. Ah, antes que me esqueça: o colega incisivo não está no ministério. Nem em alguma igreja local.
O final do século 20 e o início do século 21 mostraram a igreja em grande vigor, inclusive em lugares dada como morta. Aliás, a igreja de Cristo tem o estranho hábito de sepultar seus coveiros. Seus “salvadores” se perdem na poeira dos tempos, tornam-se nada, e ela segue sua jornada. Ela não precisa da salvação que afoitos escoteiros mirins lhe apresentam. Ela segue bem sem eles, e eles, na realidade, a atrapalham.
Falta bom senso a tais pessoas. Lembro-me de um jovem que, dizendo-se intelectual, apresentou-me algumas mudanças necessárias na igreja que eu pastoreava, para se tornar membro dela. Se tivéssemos sua visão, que era muito necessária para a igreja se arrumar e sobreviver, ele nos agraciaria sendo membro dela. Acho que ele se via como um presente de Deus à igreja. Como não estávamos tão desesperados assim, catando membros, disse-lhe que conseguiríamos sobreviver sem ele. Aquela igreja vai bem, e o jovem hoje não está em igreja alguma. Salvadores que não usam sua receita (e talvez se dessem mal com ela), mas, pior ainda, rejeitam a receita do Salvador, que tem mantido a igreja viva e vigorosa, em vinte e um séculos.
Esta visão dos escoteiros mirins da igreja parte do pressuposto, equivocado, de que ela é uma instituição meramente sociológica. Aplicando à igreja categorias de pensamentos seculares, eles querem adaptá-la aos novos tempos. Não entendem que a igreja é de origem divina, tem caráter sobrenatural, e que o que a mantém de pé é a presença do Espírito Santo que age nela, corpo de Cristo. E se ela se adaptar a novos tempos, estará sempre mudando sua forma e sua essência. Mudando sua essência, o conteúdo de sua pregação, deixará de ser igreja, embora mantenha o nome. Por exemplo: tendo deixado de ver as pessoas como pecadoras e sim como clientes por lisonjear, a igreja abandonou o conceito de pecado. Quase não se fala nele. Ele é desajuste, pressão social, outra coisa qualquer. Seu enfoque é psicológico, não bíblico. Em muitos aconselhamentos, a Psicologia tomou o lugar da Bíblia. Não é que Deus diz na sua Palavra, mas o que homens pecadores dizem com seus escritos. Uma cultura antropocêntrica colocou o foco do culto no homem: vencer, triunfar sobre as adversidades, enriquecer, ser feliz. Você ouve falar de santidade, do juízo final, sobre a volta de Jesus? Você tem ouvido sermões sobre a cruz? Você ouve falar de salvação pela graça, por meio da fé? Glorificar a Deus passou a ser gritar num culto. Vi isso num programa evangélico na televisão: “Glorifica mais alto, Fulano!”, pedia o animador do culto ao baterista. Glorificar a Deus é espancar a bateria?
Sei que são novos tempos, mas a adaptação da igreja aos tempos cria uma cultura curiosa: o bom culto é o animado, agitado, o barulhento, aquele onde a pessoa aculturada a tempos assim, se sente bem. Nao é mais o que produz reflexão sobre a vida, sobre Deus, sobre a eternidade. Outro dia comentei com Meacir que toda vez que ligo a televisão, não importa o horário, encontro um canal com gente pulando e se remexendo. Ver televisão me cansa! Como tem gente pulando! Reflexo de uma cultura de expressão corporal, de agito, de barulho. Os sentidos são mais importantes que a razão. Isto migrou para a liturgia. A boa liturgia deve ser agitada, e inclusive o sermão deve ser agitado. Mas como há mandamentos neotestamentários exortando ao uso da razão, do pensamento, da análise! O fio de prumo deve ser cultural ou neotestamentário? Devo me preocupar com o conteúdo bíblico ou com a “salvação litúrgica” recomendada por alguém, sem a qual minha igreja morrerá? Fico com a orientação do autor da Bíblia, o Espírito Santo (2Pe 1.21) ou com a dos escoteiros mirins eclesiásticos?
Será que o presenciamos é o que estava na mente de Jesus quando disse “edificarei a minha igreja”? Igreja é um lugar onde passamos momentos de catarse? Igreja é aonde vamos para nos sentirmos bem? Para sobreviver a igreja precisa de toda essa parafernália que está enriquecendo seus vendedores? Esses “salvadores” com suas fórmulas, modelos, estruturas, opções litúrgicas, não estarão se esquecendo do conteúdo da igreja? Que ela não é um ajuntamento social, mas o agrupamento dos salvos, com uma missão? Que sua finalidade não é promover entretenimento para as pessoas, mas anunciar todo o conselho de Deus? Que sua saúde e seu vigor dependem de Deus, do seu poder que opera nela, de sua fixação sobre o Cristo crucificado?
A igreja dispensa salvadores humanos e receitas sociológicas ou empresariais para viver. Ela é sobrenatural. Ela vive e sobrevive por ser o corpo de Cristo na terra. E não apenas a igreja universal ou um tipo de igreja abstrata, idealizada por muitos. A igreja local é corpo de Cristo. A expressão paulina “Ora, vós sois corpo de Cristo, e individualmente seus membros” (1Co 12.27) foi dirigida a uma igreja local, e não a uma comunidade etérea, vaporosa, conceitual, que muitos admiram, mas que não existe. Seu Senhor é aquele que diz de si mesmo: “Eu sou o que vivo; fui morto, mas eis aqui estou vivo para todo o sempre! e tenho as chaves da morte e do inferno”(Ap 1.18). E ela está edificada sobre ele. Domingo passado, ao celebrar a ceia do Senhor com a igreja da qual sou servo, a Batista Central de Macapá, no Amapá, disse-lhe que aquele era o momento mais significativo da liturgia cristã, para mim. Era a certidão de nascimento da igreja. “Este cálice é o novo pacto em meu sangue, que é derramado por vós” (Lc 22.20). Deus fez um novo pacto com os homens, e ele está manifestado na igreja. Somos o povo do novo pacto. Ele foi firmado com o sangue de Cristo. A igreja nunca será extinta nem vencida. Ela nasceu na eternidade, no coração de Deus (Ef 1.4), irrompeu na história pelo ministério do mais fantástico vulto que a humanidade conheceu, Jesus de Nazaré, Deus-Homem, e foi pactuada entre Deus e os homens pelo sangue de Jesus. E, na meta-história, finda a história, e não houver mais nenhuma instituição humana, a igreja estará com o Senhor. A igreja universal é fantástica. A igreja local, expressão máxima da igreja militante, não é menos fantástica. Mesmo com tanto joio no meio do trigo, ela é de Jesus. O trigo vale a pena! É preciso ter cuidado para não trazermos mais joio para o trigal além daquele que o inimigo planta.
A igreja não precisa se adaptar a novos tempos nem de novas técnicas e modelos. Ela precisa viver o evangelho porque o poder é do evangelho (Rm 1.16), e não de formas ou modelos. Por exemplo, Jesus não tinha uma técnica para atrair pessoas. Ele pregava as boas-novas do reino. Corações que querem Deus se abrem para a mensagem de boas-novas. É diferente ter uma membresia atraída pela mensagem de Jesus e ter uma membresia atraída por um programa agradável. Um dia, esta parcela de atraídos por programas descobrirá que o mundo oferece mais, e irá atrás do mundo. Porque o mundo sabe oferecer entretenimento muito melhor que nós. E quem transforma o evangelho em entretenimento dará contas a Deus do que faz. Mas, a membresia que se rendeu ao evangelho de Jesus permanece. A igreja está sendo desfigurada e em alguns momentos ridicularizada por pessoas que a despem de sua grandeza e sua sobrenaturalidade e insistem em métodos e receitas de marqueteiros para energizá-la. A energia da igreja vem do Espírito Santo, da comunhão com ele, do abandono do pecado, do aprofundamento nas Escrituras. Para triunfar, ela precisa apenas ser igreja. Isto é: depender da graça de Deus, ser espiritual, viver na presença dele, obedecer a sua palavra, cultivar bom relacionamento interno, viver ao pé da cruz, enfim. A igreja é espiritual e precisa de soluções espirituais. E estas estão prescritas na Palavra de Deus. A igreja precisa voltar a ser igreja e deixar de ser uma organização religiosa comandada por executivos espirituais e conselhos administrativos empresariais. Precisa ser igreja, nada mais que isso.
Por isso, deixem de tentar salvar a igreja. Cristo já fez isto e lhe outorgou vitória. Sirvam-na. Amem-na. Engajem-se nela. Isto basta, porque é Deus quem a faz crescer. “Eu plantei; Apolo regou; mas Deus deu o crescimento” (1Co 3.6). Por isso, Zezinho, Huguinho e Luisinho: menos afoiteza e mais serviço. Mais testemunho e mais evangelização. Mais investimento do tempo, emoções e bens. Sejam servos, e não salvadores. A igreja precisa de amantes e de servos, não de salvadores. Ela tem um: Ele. Isso basta.
Isaltino Gomes Coelho Filho
Extraído do site:
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