“A não ser que seja convencido pelo testemunho da Escritura ou por
argumentos evidentes... – a minha convicção vem das Escrituras a que me
reporto, e minha consciência está presa à palavra de Deus – nada consigo nem
quero retratar, porque é difícil, maléfico e perigoso agir contra a
consciência. Deus me ajude, Amém.”1
As palavras de Martinho Lutero ecoam pelos séculos como um
testemunho, dos mais eloquentes, da atitude de submissão e obediência
incondicionais à Palavra de Deus escrita. De fato, os cristãos evangélicos têm
uma herança muito preciosa de respeito e consideração à Bíblia e ao seu ensino.
Homens como Lutero, Melanchton, Zwinglio, Calvino, Knox e outros reformadores
basearam todo o seu esforço e obra num fundamento comum: Sola Scriptura,
i.e., “só a Escritura”, somente ela tem a autoridade e o direito de ser
obedecida – não o papa, bispos, concílios ou tradições.
Existe hoje, nas igrejas, uma forte tentação no sentido de negligenciar a herança histórica, exatamente na área fundamental da bibliologia, quer pela falta de preparo bíblico-teológico de grande parte da liderança, quer pelo favorecimento generalizado do valor e autoridade relativos da experiência sobre a Bíblia. Em anos recentes temos observado uma sutil, mas inquietante, transferência da submissão à autoridade da Palavra de Deus escrita para a “palavra” oral de pastores e líderes evangélicos populares. Alguns desses procuram remeter o povo evangélico de volta à Bíblia. Muitas vezes, no entanto, verificamos que o povo evangélico, consciente ou inconscientemente, favorece o ambiente em que alguém é capaz de suas próprias interpretações e/ou opiniões com um “assim diz o SENHOR”, que isenta a maioria menos avisada da tarefa, sempre salutar, de examinar as Escrituras “para ver se as causas eram de fato assim” (At 17.11c).
Ataques frontais, ou camuflados, à veracidade e integridade das Escrituras têm sido frequentes ao longo da história, bem como as releituras ideológicas que rejeitam a compreensão histórico-gramatical normal (literal) do texto bíblico. Nos dois primeiros números de Vox Scripturae, o Prof. Richard Sturz e o Dr. Russell Shedd trabalharam com alguns dos aspectos mais modernos e relevantes nestas áreas.2 Nosso intuito neste artigo é de levar a discussão adiante, traçando algumas considerações sobre a questão atual da qualidade normativa da Bíblia e suas implicações para a realidade evangélica brasileira.
Existe hoje, nas igrejas, uma forte tentação no sentido de negligenciar a herança histórica, exatamente na área fundamental da bibliologia, quer pela falta de preparo bíblico-teológico de grande parte da liderança, quer pelo favorecimento generalizado do valor e autoridade relativos da experiência sobre a Bíblia. Em anos recentes temos observado uma sutil, mas inquietante, transferência da submissão à autoridade da Palavra de Deus escrita para a “palavra” oral de pastores e líderes evangélicos populares. Alguns desses procuram remeter o povo evangélico de volta à Bíblia. Muitas vezes, no entanto, verificamos que o povo evangélico, consciente ou inconscientemente, favorece o ambiente em que alguém é capaz de suas próprias interpretações e/ou opiniões com um “assim diz o SENHOR”, que isenta a maioria menos avisada da tarefa, sempre salutar, de examinar as Escrituras “para ver se as causas eram de fato assim” (At 17.11c).
Ataques frontais, ou camuflados, à veracidade e integridade das Escrituras têm sido frequentes ao longo da história, bem como as releituras ideológicas que rejeitam a compreensão histórico-gramatical normal (literal) do texto bíblico. Nos dois primeiros números de Vox Scripturae, o Prof. Richard Sturz e o Dr. Russell Shedd trabalharam com alguns dos aspectos mais modernos e relevantes nestas áreas.2 Nosso intuito neste artigo é de levar a discussão adiante, traçando algumas considerações sobre a questão atual da qualidade normativa da Bíblia e suas implicações para a realidade evangélica brasileira.
I. A CRISE ATUAL
A difícil fase que a sociedade brasileira (e latino-americana) tem vivenciado também afeta as igrejas. Em primeiro lugar, é claro, pelo simples fato de passar a igreja pelos mesmos problemas práticos que todo e qualquer segmento da sociedade enfrenta, principalmente na área econômico-social. Em segundo lugar, porque a igreja tem sido constantemente influenciada em sua identidade, organização e missão por certas premissas filosóficas inerentes à mentalidade que caracteriza a segunda metade do século XX. Um exame, por superficial que seja, dos conceitos mais populares de autoridade bíblica encontrados nas igrejas revela tendências perigosas do rumo ortodoxo (grego: “opinião reta”) que deveria orientar a igreja na sua compreensão do papel normativo das Escrituras.
l. A Percepção Restritiva da Autoridade Bíblica
A autoridade bíblica limita-se a assuntos de natureza espiritual (ou religiosa), tais como o culto, a escola dominical, a evangelização e programas da igreja. Quanto à área moral, ética ou financeira, o que decide é a experiência comum da comunidade cristã, modelos ou padrões pragmáticos (do tipo “o que funciona é O que é certo”), o conselho de “autoridades” na área ou simplesmente as tendências do momento. Naturalmente, a pressuposição subjacente deste conceito de papel normativo da Bíblia é a de que existe uma dicotomia entre aquilo que se torna como “espiritual” e o que é tido como “profano”. Tal dualismo, porém, tem mais afinidade com o neoplatonismo dos primeiros séculos da igreja cristã (distinção absoluta entre “espírito” e “matéria”) do que com o ensino do Novo Testamento (cf. Mc 7.1-23; 1 Co 10.31; Cl 3.17).
A autoridade bíblica limita-se a assuntos de natureza espiritual (ou religiosa), tais como o culto, a escola dominical, a evangelização e programas da igreja. Quanto à área moral, ética ou financeira, o que decide é a experiência comum da comunidade cristã, modelos ou padrões pragmáticos (do tipo “o que funciona é O que é certo”), o conselho de “autoridades” na área ou simplesmente as tendências do momento. Naturalmente, a pressuposição subjacente deste conceito de papel normativo da Bíblia é a de que existe uma dicotomia entre aquilo que se torna como “espiritual” e o que é tido como “profano”. Tal dualismo, porém, tem mais afinidade com o neoplatonismo dos primeiros séculos da igreja cristã (distinção absoluta entre “espírito” e “matéria”) do que com o ensino do Novo Testamento (cf. Mc 7.1-23; 1 Co 10.31; Cl 3.17).
2. A Visão Impressionista da Autoridade Bíblica
Só é determinativo ou autorizado no texto bíblico aquilo que provoca no leitor alguma “impressão” ou reação forte. O leitor tende a igualar a mensagem de uma passagem bíblica com os pensamentos que ocupam sua mente enquanto ele a lê.3 Esta perspectiva parece ser das mais populares, pois encontra respaldo na cosmovisão geralmente subjetivista e individualista do homem brasileiro.4 Além disso, também corresponde, de certa forma, à noção neo-ortodoxa de um encontro existencial com Deus mediado por um texto bíblico qualquer que “se torna a palavra de Deus” para o leitor.5
Só é determinativo ou autorizado no texto bíblico aquilo que provoca no leitor alguma “impressão” ou reação forte. O leitor tende a igualar a mensagem de uma passagem bíblica com os pensamentos que ocupam sua mente enquanto ele a lê.3 Esta perspectiva parece ser das mais populares, pois encontra respaldo na cosmovisão geralmente subjetivista e individualista do homem brasileiro.4 Além disso, também corresponde, de certa forma, à noção neo-ortodoxa de um encontro existencial com Deus mediado por um texto bíblico qualquer que “se torna a palavra de Deus” para o leitor.5
3. A Concepção Dogmática da Autoridade Bíblica
A Bíblia é considerada detentora de autoridade, mas somente nos aspectos que favoreçam ou sejam convenientes a uma posição doutrinária que este ou aquele grupo ou movimento promove. Listas de versículos como texto-prova desta ou daquela doutrina são apresentadas sem maiores cuidados quanto ao contexto de cada passagem, seu propósito original e sua compreensão dentro do livro ou autor bíblico onde se encontra. O conteúdo do famoso dito, “texto fora de contexto é pretexto”, ainda que teoricamente repudiado pela maioria de nós, acaba, muitas vezes, sendo a descrição mais apurada da prática hermenêutica de muitos de nós. O grande problema aqui é saber o que fazer com todo o resto das Escrituras que continua detendo autoridade, mas que, aparentemente, não se encaixa com o sistema doutrinário defendido. O “reducionismo”, como método hermenêutico, tem caracterizado a exegese histórico-crítica (liberal), mas também muito daquilo que se denomina interpretação ortodoxa da Bíblia. Basta olhar à nossa volta e verificar o que, por exemplo, têm feito os proponentes do chamado “evangelho da prosperidade”. As passagens que falam de sucesso material e bem-estar físico são convenientemente requisitadas como alicerces do ensino proposto; contudo, as que falam de sofrimento físico, perseguição e estilo de vida simples do crente são, quando muito, “desmitologizadas” ou relegadas a segundo plano, se não totalmente negligenciadas.
Por trás destas perspectivas deficientes e suas implicações está, é claro, uma visão fragmentada da Bíblia: não se entende as partes pelo todo nem vice-versa. Mas, acima de tudo, este é um problema de atitude em relação à Palavra de Deus, principalmente no que concerne ao propósito para o qual ela nos foi dada “por escrito” e nas formas nas quais ficou registrada. Analisaremos, a seguir, quais os componentes necessários e apropriados para uma visão equilibrada, mas sobretudo fidedigna, da autoridade e do consequente papel normativo das Escrituras.
A Bíblia é considerada detentora de autoridade, mas somente nos aspectos que favoreçam ou sejam convenientes a uma posição doutrinária que este ou aquele grupo ou movimento promove. Listas de versículos como texto-prova desta ou daquela doutrina são apresentadas sem maiores cuidados quanto ao contexto de cada passagem, seu propósito original e sua compreensão dentro do livro ou autor bíblico onde se encontra. O conteúdo do famoso dito, “texto fora de contexto é pretexto”, ainda que teoricamente repudiado pela maioria de nós, acaba, muitas vezes, sendo a descrição mais apurada da prática hermenêutica de muitos de nós. O grande problema aqui é saber o que fazer com todo o resto das Escrituras que continua detendo autoridade, mas que, aparentemente, não se encaixa com o sistema doutrinário defendido. O “reducionismo”, como método hermenêutico, tem caracterizado a exegese histórico-crítica (liberal), mas também muito daquilo que se denomina interpretação ortodoxa da Bíblia. Basta olhar à nossa volta e verificar o que, por exemplo, têm feito os proponentes do chamado “evangelho da prosperidade”. As passagens que falam de sucesso material e bem-estar físico são convenientemente requisitadas como alicerces do ensino proposto; contudo, as que falam de sofrimento físico, perseguição e estilo de vida simples do crente são, quando muito, “desmitologizadas” ou relegadas a segundo plano, se não totalmente negligenciadas.
Por trás destas perspectivas deficientes e suas implicações está, é claro, uma visão fragmentada da Bíblia: não se entende as partes pelo todo nem vice-versa. Mas, acima de tudo, este é um problema de atitude em relação à Palavra de Deus, principalmente no que concerne ao propósito para o qual ela nos foi dada “por escrito” e nas formas nas quais ficou registrada. Analisaremos, a seguir, quais os componentes necessários e apropriados para uma visão equilibrada, mas sobretudo fidedigna, da autoridade e do consequente papel normativo das Escrituras.
II. RESGATANDO O CONCEITO DE AUTORIDADE E PAPEL NORMATIVO DAS ESCRITURAS
Há hoje um forte preconceito quanto à ideia de “autoridade”. Vivemos num mundo pós-iluminista (do movimento europeu dos séculos XVII e XVIII que deu origem à ciência moderna) e, como tal, “autonomia” é a palavra de ordem, não autoridade. O homem, colocado no centro do universo, e a razão humana, elevada à medida de todas as coisas, tornam extremamente difícil a ideia de autoridade extrínseca (imposta de fora do indivíduo).6 A história recente do Brasil também contribui para esse preconceito. A mudança do regime militar “autoritário” para a democracia de “liberdade” tem trazido consigo uma infeliz confusão de “autoridade” com “autoritarismo”. O “autoritarismo” é o abuso de poder, a exigência de submissão sem, necessariamente, respaldo na verdade ou na moral, sem critério objetivo, a não ser a manutenção do status de poder absoluto. Mas, isso não é “autoridade” nem o exercício dela. Entretanto, quando se fala de autoridade bíblica, parece que algo dessa natureza vem à mente de muitas pessoas; afinal, pensam elas, “autoridade” deve ser o antônimo de liberdade e democracia. Autoridade, ao contrário, deriva seu status com base em algum critério objetivo. Segundo o dicionário, autoridade é “o direito ou poder de fazer-se obedecer, dar ordens, tomar decisões, agir”.7 No que se refere à autoridade bíblica, este “direito” ou “poder” de fazer-se obedecer decorre fundamentalmente de três premissas históricas: 1) a natureza da revelação bíblica em contraste com a literatura de origem meramente humana; 2) o autotestemunho da Bíblia quanto à sua veracidade e fidedignidade como revelação de Deus; e 3) os efeitos historicamente verificáveis da aplicação do ensino peculiar da Escritura à vida e estruturas humanas.
Há hoje um forte preconceito quanto à ideia de “autoridade”. Vivemos num mundo pós-iluminista (do movimento europeu dos séculos XVII e XVIII que deu origem à ciência moderna) e, como tal, “autonomia” é a palavra de ordem, não autoridade. O homem, colocado no centro do universo, e a razão humana, elevada à medida de todas as coisas, tornam extremamente difícil a ideia de autoridade extrínseca (imposta de fora do indivíduo).6 A história recente do Brasil também contribui para esse preconceito. A mudança do regime militar “autoritário” para a democracia de “liberdade” tem trazido consigo uma infeliz confusão de “autoridade” com “autoritarismo”. O “autoritarismo” é o abuso de poder, a exigência de submissão sem, necessariamente, respaldo na verdade ou na moral, sem critério objetivo, a não ser a manutenção do status de poder absoluto. Mas, isso não é “autoridade” nem o exercício dela. Entretanto, quando se fala de autoridade bíblica, parece que algo dessa natureza vem à mente de muitas pessoas; afinal, pensam elas, “autoridade” deve ser o antônimo de liberdade e democracia. Autoridade, ao contrário, deriva seu status com base em algum critério objetivo. Segundo o dicionário, autoridade é “o direito ou poder de fazer-se obedecer, dar ordens, tomar decisões, agir”.7 No que se refere à autoridade bíblica, este “direito” ou “poder” de fazer-se obedecer decorre fundamentalmente de três premissas históricas: 1) a natureza da revelação bíblica em contraste com a literatura de origem meramente humana; 2) o autotestemunho da Bíblia quanto à sua veracidade e fidedignidade como revelação de Deus; e 3) os efeitos historicamente verificáveis da aplicação do ensino peculiar da Escritura à vida e estruturas humanas.
1. A Natureza da Revelação Bíblica
O Prof. Sturz já tratou, no primeiro número de VS, da questão do conceito de inspiração plenário-verbal e das alternativas oferecidas ao mesmo.8 O que desejamos destacar aqui é, mais particularmente, o fenômeno das Escrituras, i.e., de sua qualidade intrínseca de ser a Palavra de Deus escrita. O que, afinal, diferencia a Bíblia de outros livros? Literalmente falando, como pode um livro, cuja característica básica é ser uma narrativa de “história antiga”, ser ao mesmo tempo a revelação de Deus?
Toda autoridade pertence a Deus. A própria Bíblia vê a autoridade como totalmente concentrada em Deus (e.g., Is 40; Mt 28.18). E é somente a partir desta constatação que podemos afirmar que as Escrituras têm autoridade; i.e., desde que toda autoridade pertence exclusivamente a Deus, então Ele mesmo de alguma maneira conferiu Sua autoridade à Bíblia.9 Essa delegação de autoridade pode ser ilustrada logo no primeiro capítulo de Gênesis, quando Ele, proferindo a sua Palavra, diz isto ou diz aquilo, e as coisas acontecem (Gn 1.3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26). Da mesma forma, os profetas, Seus agentes humanos, são equipados pelo Espírito Santo e enviados ao povo. Sua autoridade é delegada por Deus. Por isso eles dizem “assim diz o SENHOR”, ao anunciar suas mensagens de julgamento e salvação da parte de Deus. Da mesma forma, aqueles que testemunharam a vida e a obra do Messias depois escreveram o que escreveram para que fosse documentação que servisse de alicerce para a igreja (At 2.42; Ef 2.20).
Portanto, a autoridade dos apóstolos, tanto na palavra falada quanto na escrita (e.g., 2 Pe 3.15s.), também é autoridade divina.
A autoridade delegada, porém, reside especificamente na Palavra, pois é a Palavra de Deus. Neste sentido, também há uma certa confusão quanto ao conceito de inspiração. Na realidade, o que é inspirado não é O escritor humano, mas sim o texto bíblico: “Toda Escritura é inspirada”. O termo “inspirada” (theopneustos), de 2Timóteo 3.16, expressa, mais do que qualquer outra coisa, que o “produto final” de todo o processo, a Escritura, é o que possui a qualidade de ser Palavra de Deus e, portanto, autoridade divina. Os escritores humanos foram “conduzidos” (pheromenoi) pelo Espírito Santo para que registrassem o texto “soprado por Deus”, o qual possui a autoridade de Palavra de Deus e cuja prerrogativa é ser obedecido (2 Pe 1.21, cf. 1.19).10
O Prof. Sturz já tratou, no primeiro número de VS, da questão do conceito de inspiração plenário-verbal e das alternativas oferecidas ao mesmo.8 O que desejamos destacar aqui é, mais particularmente, o fenômeno das Escrituras, i.e., de sua qualidade intrínseca de ser a Palavra de Deus escrita. O que, afinal, diferencia a Bíblia de outros livros? Literalmente falando, como pode um livro, cuja característica básica é ser uma narrativa de “história antiga”, ser ao mesmo tempo a revelação de Deus?
Toda autoridade pertence a Deus. A própria Bíblia vê a autoridade como totalmente concentrada em Deus (e.g., Is 40; Mt 28.18). E é somente a partir desta constatação que podemos afirmar que as Escrituras têm autoridade; i.e., desde que toda autoridade pertence exclusivamente a Deus, então Ele mesmo de alguma maneira conferiu Sua autoridade à Bíblia.9 Essa delegação de autoridade pode ser ilustrada logo no primeiro capítulo de Gênesis, quando Ele, proferindo a sua Palavra, diz isto ou diz aquilo, e as coisas acontecem (Gn 1.3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26). Da mesma forma, os profetas, Seus agentes humanos, são equipados pelo Espírito Santo e enviados ao povo. Sua autoridade é delegada por Deus. Por isso eles dizem “assim diz o SENHOR”, ao anunciar suas mensagens de julgamento e salvação da parte de Deus. Da mesma forma, aqueles que testemunharam a vida e a obra do Messias depois escreveram o que escreveram para que fosse documentação que servisse de alicerce para a igreja (At 2.42; Ef 2.20).
Portanto, a autoridade dos apóstolos, tanto na palavra falada quanto na escrita (e.g., 2 Pe 3.15s.), também é autoridade divina.
A autoridade delegada, porém, reside especificamente na Palavra, pois é a Palavra de Deus. Neste sentido, também há uma certa confusão quanto ao conceito de inspiração. Na realidade, o que é inspirado não é O escritor humano, mas sim o texto bíblico: “Toda Escritura é inspirada”. O termo “inspirada” (theopneustos), de 2Timóteo 3.16, expressa, mais do que qualquer outra coisa, que o “produto final” de todo o processo, a Escritura, é o que possui a qualidade de ser Palavra de Deus e, portanto, autoridade divina. Os escritores humanos foram “conduzidos” (pheromenoi) pelo Espírito Santo para que registrassem o texto “soprado por Deus”, o qual possui a autoridade de Palavra de Deus e cuja prerrogativa é ser obedecido (2 Pe 1.21, cf. 1.19).10
2. O Autotestemunho da Bíblia
Há uma impressionante coerência entre os diversos livros bíblicos. (Às vezes nos esquecemos de que a Bíblia é, na verdade, uma pequena biblioteca composta de vários livros.) Aproximadamente quarenta escritores de culturas, línguas e contextos vivenciais diferentes escreveram seus livros, cobrindo um período de mil e quinhentos anos. Por mais intrigantes que sejam as poucas e aparentes discrepâncias11 entre eles, não é possível evitar uma reação de pasmo diante do “fenômeno” das Escrituras. Mas o método de revelação de Deus para os escritores humanos não é muito discutido na Bíblia. Há, por exemplo, pesquisa histórica (Lc 1.1-4), lembrança (Jo 14.26), ditado (Ap 1.11-3.22), visões (2 Co 12.1-4) e o uso de bom julgamento (1 Co 7.12).
Uma vez tendo reivindicado ser o produto da ação soberana de Deus, as Escrituras são coerentemente precisas em afirmar que tudo o que dizem é verdadeiro, pois possuem autoridade divina. Seria muito fácil multiplicar as passagens do AT e do NT que presumem direta ou indiretamente tal convicção.12 Para o nosso propósito basta mencionar apenas alguns aspectos relativos ao NT, a título de ilustração:
Há uma impressionante coerência entre os diversos livros bíblicos. (Às vezes nos esquecemos de que a Bíblia é, na verdade, uma pequena biblioteca composta de vários livros.) Aproximadamente quarenta escritores de culturas, línguas e contextos vivenciais diferentes escreveram seus livros, cobrindo um período de mil e quinhentos anos. Por mais intrigantes que sejam as poucas e aparentes discrepâncias11 entre eles, não é possível evitar uma reação de pasmo diante do “fenômeno” das Escrituras. Mas o método de revelação de Deus para os escritores humanos não é muito discutido na Bíblia. Há, por exemplo, pesquisa histórica (Lc 1.1-4), lembrança (Jo 14.26), ditado (Ap 1.11-3.22), visões (2 Co 12.1-4) e o uso de bom julgamento (1 Co 7.12).
Uma vez tendo reivindicado ser o produto da ação soberana de Deus, as Escrituras são coerentemente precisas em afirmar que tudo o que dizem é verdadeiro, pois possuem autoridade divina. Seria muito fácil multiplicar as passagens do AT e do NT que presumem direta ou indiretamente tal convicção.12 Para o nosso propósito basta mencionar apenas alguns aspectos relativos ao NT, a título de ilustração:
a. Jesus reconheceu o AT como Escritura:
* Inspiração – Marcos 12.36 (cf. Sl 110.1);
* Historicidade – Adão e Eva (Mt 19.4s.), dilúvio (Mt 24.37), Jonas (Lc 11.32), sarça ardente (Lc 20.37);
* Cumprimento – Mateus 5.18
* Infalibilidade – João 10.35
b. Jesus reivindicou autoridade para as suas próprias palavras:
* Inspiração – Marcos 12.36 (cf. Sl 110.1);
* Historicidade – Adão e Eva (Mt 19.4s.), dilúvio (Mt 24.37), Jonas (Lc 11.32), sarça ardente (Lc 20.37);
* Cumprimento – Mateus 5.18
* Infalibilidade – João 10.35
b. Jesus reivindicou autoridade para as suas próprias palavras:
* Importância – Marcos 8.38; Mateus 7.24-27;
* Eternidade – Mateus 24.35;
* Papel normativo – Mateus 5.22, 28, 32, 34, 39, 44; 28.18-20
* Eternidade – Mateus 24.35;
* Papel normativo – Mateus 5.22, 28, 32, 34, 39, 44; 28.18-20
c. Paulo reconheceu o AT como Escritura:
* Inspiração – 2 Timóteo 3.16;
* Personificação da Escritura – Romanos 9.17
* Inspiração – 2 Timóteo 3.16;
* Personificação da Escritura – Romanos 9.17
d. Paulo reivindicou autoridade divina para as suas palavras:
* Reveladas pelo Espírito – 1Coríntios 2.13;
* Normativas – 1Coríntios 14.37;
* Mensagem evangélica – 1Tessalonicenses 2.13; Gálatas 1.6-9
* Reveladas pelo Espírito – 1Coríntios 2.13;
* Normativas – 1Coríntios 14.37;
* Mensagem evangélica – 1Tessalonicenses 2.13; Gálatas 1.6-9
e. Pedro reconheceu o AT como Escritura:
* O registro da revelação divina – 2Pedro 1.19-21
* O registro da revelação divina – 2Pedro 1.19-21
f. Pedro
reconheceu as cartas de Paulo como Escritura:
* Mesmo caráter do AT – 2Pedro 3.15s.
* Mesmo caráter do AT – 2Pedro 3.15s.
Ainda de muitas outras formas a Bíblia reivindica e atesta sua
veracidade e fidedignidade.13 A discussão moderna sobre
bibliologia tem levado muitos evangélicos, em suas tentativas de defesa da
integridade da revelação bíblica, a se refugiarem numa conceituação que destaca
de forma “negativa” o que as Escrituras enfatizam de forma “positiva”. Os
adjetivos “infalível” e “inerrante” têm sido empregados com tanta intensidade e
veemência que, às vezes, parece que falta espaço apropriado para se dizer
“verdadeira”, “fidedigna”, “confiável”.
Pode parecer, à primeira vista, uma mera questão de semântica. Mas vai muito além disso. É também uma questão de atitude. Não precisamos, nem devemos, ficar numa “retranca” apologética. Se cremos que, de fato, Deus é verdadeiro, e é mentiroso todo homem (Rm 3.4), então é imperativo que apresentemos Sua mensagem ao homem moderno com a convicção de que é derivada da única fonte verdadeira, autorizada e normativa.
Pode parecer, à primeira vista, uma mera questão de semântica. Mas vai muito além disso. É também uma questão de atitude. Não precisamos, nem devemos, ficar numa “retranca” apologética. Se cremos que, de fato, Deus é verdadeiro, e é mentiroso todo homem (Rm 3.4), então é imperativo que apresentemos Sua mensagem ao homem moderno com a convicção de que é derivada da única fonte verdadeira, autorizada e normativa.
3. Aplicação e Efeitos do Ensino Bíblico
A compreensão de que as Escrituras são a revelação de Deus e de Sua vontade aos homens e a verificação de sua auto- reivindicação de ser verdadeira e fidedigna, ao apresentar tal revelação, trazem uma implicação inescapável. As Escrituras são normativas para a análise da realidade. Sua aplicação, seja qual for o contexto, tem sido historicamente determinada a partir do texto bíblico como o primeiro passo do processo, não o contrário. É claro que o contexto é importante, à medida que orienta o tipo de abordagem, os aspectos prementes e relevantes que devem ser examinados e interpretados. A mensagem, porém, já está de antemão estabelecida e determinada no contexto bíblico. 14
As tentativas de inverter esse processo também podem ser historicamente verificadas, bem como seus resultados. Nos últimos cento e cinquenta anos, foi a teologia do liberalismo “clássico” que mais explicitamente direcionou seus esforços no sentido de interpretar o texto bíblico e sua mensagem da perspectiva situacionista. Foi, e tem sido em suas formas mais modernas, nitidamente guiada por premissas filosóficas e antropológicas. Sua metodologia é caracterizada por um nítido anti-sobrenaturalismo e reducionismo histórico-crítico, resultado do Iluminismo.15 Um comentário elucidativo foi feito por G. Tyrrell, teólogo católico do início do século, a respeito da cristologia, com evidentes contornos “humanistas” de um dos últimos grandes expoentes do liberalismo, Adolf von Harnack. Ele disse: “O Cristo que Harnack vê, olhando para trás pelos dezenove séculos de trevas católicas, é apenas um reflexo da face protestante liberal, vista no fundo de um poço”.16
Na atualidade é a Teologia da Libertação que tem preconizado, mais do que qualquer outro movimento, o contexto sócio-religioso como o ponto de partida para a reflexão teológica. O texto bíblico é sempre um segundo passo no processo hermenêutico.17 Nas palavras de Gutiérrez, um dos pais do movimento, a Teologia da Libertação vê “teologia” como reflexão crítica sobre a práxis”. A “ortopraxia”, em lugar da “ortodoxia”, tem sido seu “grito de guerra”. De fato, não há como negar o valor de certos questionamentos levantados pela Teologia da Libertação, quando esta diz, por exemplo, que a teologia “ocidental” tradicional tende a preocupar-se mais com abstrações e “teologizações” do que com a prática cristã, a resolução cristã dos problemas do homem.18 Mas, ainda que a entrada no círculo hermenêutico (nome dado ao processo de interpretação, no qual se verifica uma constante checagem de conclusões em relação ao texto bíblico) possa dar-se a qualquer altura do processo, seja no lado do texto quanto no lado do contexto, a Escritura ainda deverá manter seu lugar normativo e reformular, sempre que necessário, a nossa pré-compreensão do texto bíblico e sua relevância para a realidade. 20
Quando olhamos para o NT, por exemplo, e perguntamos sobre a ocasião (o Sitz im Leben) que motivou a produção de seus diversos escritos, somos obrigados a concluir que a teologia do NT nos é mediada por situações vivenciais concretas – tanto nos evangelhos, cartas e Atos quanto no Apocalipse. A teologia que encontramos no NT é, portanto, dinâmica (ativa), não estática ou abstrata, divorciada de seu contexto existencial. Nossa responsabilidade, como intérpretes e exegetas, por conseguinte, é de articular essa teologia que foi dada numa situação concreta, não no abstrato, para outra situação concreta, aquela que o cristão brasileiro vive hoje. Tal tarefa hermenêutico-teológica não é fácil. Ela exige, prioritariamente, uma grande compreensão do texto bíblico no seu contexto original, a fim de que sua aplicação à realidade atual seja coerente com seu propósito. É essa fusão de “horizontes”, da perspectiva do escritor bíblico e do intérprete moderno, que orientará a missão e o papel da igreja numa determinada situação.
Acima, porém, de uma mera questão de conhecimento acadêmico vem a necessidade de compromisso sério do intérprete bíblico com a Palavra de Deus escrita.
Como evangélicos temos condições de responder relevantemente às questões que a Teologia da Libertação tem tentado responder partindo de premissas equivocadas. Mas não serão ideologias ou quaisquer outras premissas filosóficas, políticas ou sociológicas que nos direcionarão na tarefa proposta. Concordo com Robinson Cavalcanti quando este afirma que “devemos ser realistas e dizer que a confiança na relevância dos ensinos bíblicos não resolve automaticamente certas situações agudas”. 21 Entretanto, o reconhecimento de tal fato, em vez de tirar nossa atenção da Palavra e transferi-la para as ciências sociais, políticas ou filosóficas, deveria levar-nos a uma imersão ainda maior no texto bíblico, a fim de descobrirmos quais são os parâmetros básicos que nos nortearão diante de uma dada situação ou problema que a Bíblia não aborda explicitamente. Qualquer proposta de “trabalho interdisciplinar”22 que objetive resultados sérios e fiéis à mensagem do evangelho, além de resultados pragmáticos (ou utilitários), deve percorrer constantemente o caminho de volta à Palavra para checar e reformular seus pressupostos e conclusões.23
A compreensão de que as Escrituras são a revelação de Deus e de Sua vontade aos homens e a verificação de sua auto- reivindicação de ser verdadeira e fidedigna, ao apresentar tal revelação, trazem uma implicação inescapável. As Escrituras são normativas para a análise da realidade. Sua aplicação, seja qual for o contexto, tem sido historicamente determinada a partir do texto bíblico como o primeiro passo do processo, não o contrário. É claro que o contexto é importante, à medida que orienta o tipo de abordagem, os aspectos prementes e relevantes que devem ser examinados e interpretados. A mensagem, porém, já está de antemão estabelecida e determinada no contexto bíblico. 14
As tentativas de inverter esse processo também podem ser historicamente verificadas, bem como seus resultados. Nos últimos cento e cinquenta anos, foi a teologia do liberalismo “clássico” que mais explicitamente direcionou seus esforços no sentido de interpretar o texto bíblico e sua mensagem da perspectiva situacionista. Foi, e tem sido em suas formas mais modernas, nitidamente guiada por premissas filosóficas e antropológicas. Sua metodologia é caracterizada por um nítido anti-sobrenaturalismo e reducionismo histórico-crítico, resultado do Iluminismo.15 Um comentário elucidativo foi feito por G. Tyrrell, teólogo católico do início do século, a respeito da cristologia, com evidentes contornos “humanistas” de um dos últimos grandes expoentes do liberalismo, Adolf von Harnack. Ele disse: “O Cristo que Harnack vê, olhando para trás pelos dezenove séculos de trevas católicas, é apenas um reflexo da face protestante liberal, vista no fundo de um poço”.16
Na atualidade é a Teologia da Libertação que tem preconizado, mais do que qualquer outro movimento, o contexto sócio-religioso como o ponto de partida para a reflexão teológica. O texto bíblico é sempre um segundo passo no processo hermenêutico.17 Nas palavras de Gutiérrez, um dos pais do movimento, a Teologia da Libertação vê “teologia” como reflexão crítica sobre a práxis”. A “ortopraxia”, em lugar da “ortodoxia”, tem sido seu “grito de guerra”. De fato, não há como negar o valor de certos questionamentos levantados pela Teologia da Libertação, quando esta diz, por exemplo, que a teologia “ocidental” tradicional tende a preocupar-se mais com abstrações e “teologizações” do que com a prática cristã, a resolução cristã dos problemas do homem.18 Mas, ainda que a entrada no círculo hermenêutico (nome dado ao processo de interpretação, no qual se verifica uma constante checagem de conclusões em relação ao texto bíblico) possa dar-se a qualquer altura do processo, seja no lado do texto quanto no lado do contexto, a Escritura ainda deverá manter seu lugar normativo e reformular, sempre que necessário, a nossa pré-compreensão do texto bíblico e sua relevância para a realidade. 20
Quando olhamos para o NT, por exemplo, e perguntamos sobre a ocasião (o Sitz im Leben) que motivou a produção de seus diversos escritos, somos obrigados a concluir que a teologia do NT nos é mediada por situações vivenciais concretas – tanto nos evangelhos, cartas e Atos quanto no Apocalipse. A teologia que encontramos no NT é, portanto, dinâmica (ativa), não estática ou abstrata, divorciada de seu contexto existencial. Nossa responsabilidade, como intérpretes e exegetas, por conseguinte, é de articular essa teologia que foi dada numa situação concreta, não no abstrato, para outra situação concreta, aquela que o cristão brasileiro vive hoje. Tal tarefa hermenêutico-teológica não é fácil. Ela exige, prioritariamente, uma grande compreensão do texto bíblico no seu contexto original, a fim de que sua aplicação à realidade atual seja coerente com seu propósito. É essa fusão de “horizontes”, da perspectiva do escritor bíblico e do intérprete moderno, que orientará a missão e o papel da igreja numa determinada situação.
Acima, porém, de uma mera questão de conhecimento acadêmico vem a necessidade de compromisso sério do intérprete bíblico com a Palavra de Deus escrita.
Como evangélicos temos condições de responder relevantemente às questões que a Teologia da Libertação tem tentado responder partindo de premissas equivocadas. Mas não serão ideologias ou quaisquer outras premissas filosóficas, políticas ou sociológicas que nos direcionarão na tarefa proposta. Concordo com Robinson Cavalcanti quando este afirma que “devemos ser realistas e dizer que a confiança na relevância dos ensinos bíblicos não resolve automaticamente certas situações agudas”. 21 Entretanto, o reconhecimento de tal fato, em vez de tirar nossa atenção da Palavra e transferi-la para as ciências sociais, políticas ou filosóficas, deveria levar-nos a uma imersão ainda maior no texto bíblico, a fim de descobrirmos quais são os parâmetros básicos que nos nortearão diante de uma dada situação ou problema que a Bíblia não aborda explicitamente. Qualquer proposta de “trabalho interdisciplinar”22 que objetive resultados sérios e fiéis à mensagem do evangelho, além de resultados pragmáticos (ou utilitários), deve percorrer constantemente o caminho de volta à Palavra para checar e reformular seus pressupostos e conclusões.23
III. AS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS DO CONCEITO BÍBLICO DE AUTORIDADE E PAPEL NORMATIVO DAS ESCRITURAS
O conceito de autoridade, analisado acima, traz consigo dois conceitos práticos associados: submissão e normatividade.
A ideia de submissão, subordinação ou sujeição não é das mais populares na atualidade – certamente pelas mesmas razões vistas acima quanto à questão da autoridade (II.). Mas, uma atitude de submissão deve ser uma consequência natural do reconhecimento e da aceitação da autoridade de alguém ou de alguma coisa (a Constituição, por exemplo). Submissão à autoridade bíblica implicará duas atitudes essenciais ao intérprete bíblico:
1) Respeito à voz do escritor bíblico, sem lhe impor pressuposições ou preconceitos que lhe sejam estranhos. Na prática, isto significa que devemos ler o texto levando em conta a personalidade, cultura, língua, propósito, temas e ênfases específicos do autor humano da passagem que estamos estudando. Por exemplo, enquanto é verdade que Mateus pode nos ajudar a entender muito do que Marcos escreveu, ou vice-versa, o evangelista Marcos deve ser ouvido na forma em que escreveu seu livro, atentando-se para os seus propósitos e ênfases no evangelho. O mesmo se aplica a Mateus. É neste campo, o da exegese, que a teologia bíblica opera.
2) Respeito à revelação bíblica como um todo. Isto pode parecer contrário ao parágrafo acima, mas não é. Uma teologia bíblica não exclui a possibilidade, nem a necessidade, de uma teologia sistemática. Ela simplesmente estabelece certas diretrizes e limites à última. Nenhum esquema teológico deve ser imposto ao texto, de modo artificial, de forma a encaixar no sistema aquilo que não lhe seja conveniente ou mesmo que lhe seja contrário (como um quebra-cabeças, cujas peças são forçadas a se encaixar pelo competidor impaciente). Entretanto, o princípio da harmonia das partes em função do todo deve levar o intérprete a testar suas conclusões em relação a qualquer texto das Escrituras com o todo de seu ensino. Isto ele fará reconhecendo a unidade da revelação bíblica em seus aspectos primordiais: Deus e seus atributos, pecados e suas consequências, graça, encarnação, vida, morte e ressurreição do Filho de Deus, salvação e santidade etc.
São exatamente essas duas atitudes ligadas ao conceito de submissão que, na prática, apontam para a função normativa da Bíblia. Norma é “aquilo que se adota como base ou medida para a realização ou avaliação de algo”24. É somente com base nisso que a Bíblia pode ser a única regra de fé e prática. Só a partir daí, também, que se pode desejar ver os sinais positivos de uma doutrina bíblica, histórica e sadia da autoridade das Escrituras sendo crida e vivida no meio do povo de Deus no Brasil:
– apreço e apego à Palavra escrita como critério exclusivo para reger a
vida dos crentes;
– exposição do texto das Escrituras como resultado do reconhecimento da autoridade e do papel normativo da Bíblia por parte dos pastores e líderes. Se a liderança evangélica levasse tão a sério a inspiração e autoridade da Bíblia, como comumente se apregoa, estaria mais disposta a ouvir o texto e a pregar o que ele diz, em vez de usá-lo como “trampolim” para ideias e opiniões próprias. Isto se aplica a áreas tais como o sermão, o aconselhamento, a política, o trabalho social etc.;
– mais importante ainda, uma mentalidade cristã haveria de surgir não somente para contrapor a mentalidade secular que permeia a igreja, mas como estímulo e equipamento essencial à santidade cristã (Cl 3.1, 2, 16, 17).
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– exposição do texto das Escrituras como resultado do reconhecimento da autoridade e do papel normativo da Bíblia por parte dos pastores e líderes. Se a liderança evangélica levasse tão a sério a inspiração e autoridade da Bíblia, como comumente se apregoa, estaria mais disposta a ouvir o texto e a pregar o que ele diz, em vez de usá-lo como “trampolim” para ideias e opiniões próprias. Isto se aplica a áreas tais como o sermão, o aconselhamento, a política, o trabalho social etc.;
– mais importante ainda, uma mentalidade cristã haveria de surgir não somente para contrapor a mentalidade secular que permeia a igreja, mas como estímulo e equipamento essencial à santidade cristã (Cl 3.1, 2, 16, 17).
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Notas bibliográficas
1 Martinho Lutero em Pelo Evangelho Eterno. Obras Selecionados de
Momentos Decisivos da Reforma (Porto Alegre e São Leopoldo: Concórdia e
Sinodal, 1984) 148, 149.
2 R. J. Sturz, “A Palavra que Prende e Liberta”, Vox Scripturae I:1 (março 1991) 3-10; R. P Shedd, “Hermenêutica Bíblica”, Vox Scripturae I:2 (setembro 1991) 3-11. Daqui em diante utilizaremos a abreviatura VS para Vox Scripturae.
3 R. P. Martin, “Approaches to New Testament Exegesis” em L H. Marshall (ed.) New Testament Interpretation. Essays on Principies and Methods (Exeter: Paternoster, 1985) 221.
4 Veja, e.g., Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 21ª edição, 1989) 5-9. O autor traça o perfil do brasileiro, destacando sua tendência histórica para a anarquia.
5 F. A. Schaeffer, Neo-Modernismo ou Cristianismo? (São Paulo: Ação Bíblica do Brasil e Livraria Editora Evangélica, s/ data) 33-34. Veja, e.g., K. Barth, Church Dogmatics (Edimburgo: T & T Clark, 2ª edição, 1986) I.i: 198-227.
6 Uma das principais heranças do Iluminismo foi o conceito de autonomia do ser humano, com sua diversidade de expressões contemporâneas: existencialismo, pragmatismo, niilismo etc. Para um estudo mais detalhado, veja J. D. Woodbridge, “Some Misconceptions of the Impact of the ‘Enlightenment’ on the Doctrine of Scripturae”, em D. A. Carson e J. D. Woodbridge (eds.), Hermeneutics, Authority and Canon (Leicester: IVP, 1986) 237-270. Veja também F. A. Schaeffer, How Should We Then Live? (Westchester: Crossway Books, 1976) 120-166.
7 Novo Dicionário Aurélio, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1ª edição, 11ª impressão, 1975).
8 Veja VS I:1 (março 1991) 7-9.
9 Veja N. T. Wright, “How Can the Bible be Authoritative?” Vox Evangelica V:21 (1991) 15-16.
10 O processo de registro da Palavra não é descrito por Paulo. Veja 2Pedro 1.20s.
11 O Dr. Charles C. Ryrie forneceu uma lista dos supostos erros mais apontados, em conferência proferida no Brasil, em julho de 1982. A lista soma apenas 10 discrepâncias aparentes no AT e 10 no NT. Para um estudo detalhado do assunto, veja J. M. Boice (ed.), O Alicerce da Autoridade Bíblica (São Paulo: Vida Nova, 1982), especialmente os capítulos 3 e 6; H. Lindsell, The Battle for the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1976) 161-184; e N. L. Geisler (ed.), Inerrancy (Grand Rapids: Zondervan, 1979).
12 Para um excelente estudo detalhado sobre o autotestemunho da Bíblia, veja W A. Grudem, “Scripture Self-Attestation” em D. A. Carson e J. D. Woodbridge (eds.) Scripture and Truth (Leicester: IVP, 1983) 19-59.
13E.g., no cumprimento de profecias do AT no NT, especialmente as profecias sobre o Messias e Sua vinda.
14Veja a excelente discussão sobre contextualização e teologia em B. J. Nicholls, Contextualização: Uma Teologia do Evangelho e Cultura (São Paulo: Vida Nova, 1983).
15 Para um ótimo resumo, ainda que panorâmico, veja E. R. Mueller, “O Método Histórico-Crítico – Uma Avaliação” (Apêndice 2), em G. D. Fee e D. Stuart, Entendes O Que Lês? (São Paulo: Vida Nova, 1984) 237-318.
16 G. Tyrrell, Christionity at the Crossroads, 44, citado por A. N. S. Lane, The Lion Concise Book of Christian Thought (Tring: Lion, 1984) 175, tradução livre.
17 Veja, e.g., J. L. Segundo, Libertação da Teologia (São Paulo: Loyola, 1978), principalmente os capítulos 1 e 4; L. Boff, Jesus Cristo Libertador (Petrópolis: Vozes, 1972, 12ª edição) 222-234, com ênfase na Cristologia da Teologia da Libertação.
18 G. Gutiérrez, Teologia da Libertação (Petrópolis: Vozes, 1986, 6ª edição) 18.
19 Veja, e.g., J. Sobrino, Christology at the Crossroads (Nova Iorque: Orbis, 1978) xv-xxvi.
20 Bultmann fez interessantes comentários sobre a questão das pressuposições do intérprete da Bíblia na sua famosa monografia “Será possível a exegese livre de premissas?” (1957), R. Bultmann, Crer e Compreender: Artigos Selecionados (São Leopoldo: Sinodal, 1986) 223-239. A perspectiva de Bultmann, porém, é tendenciosa para o existencialismo “heideggeriano”.
21R. Cavalcanti, Igreja: Comunidade da Liberdade (Niterói e São Paulo: VINDE e SEPAL, 1989) 22.
Cavalcanti, op. cit., 40.
22Bong Ro observa em Theological News 22:3 (julho-setembro, 1991; boletim da World Evangelical Fellowship) que muita teologia asiática tem resultado em sincretismo, acomodação ou situacionismo. O problema fundamental, comenta 23Bong Ro, é a falta de uma hermenêutica bíblica.
24Novo Dicionário Aurélio (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, 1ª edição, 11ª impressão).
2 R. J. Sturz, “A Palavra que Prende e Liberta”, Vox Scripturae I:1 (março 1991) 3-10; R. P Shedd, “Hermenêutica Bíblica”, Vox Scripturae I:2 (setembro 1991) 3-11. Daqui em diante utilizaremos a abreviatura VS para Vox Scripturae.
3 R. P. Martin, “Approaches to New Testament Exegesis” em L H. Marshall (ed.) New Testament Interpretation. Essays on Principies and Methods (Exeter: Paternoster, 1985) 221.
4 Veja, e.g., Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 21ª edição, 1989) 5-9. O autor traça o perfil do brasileiro, destacando sua tendência histórica para a anarquia.
5 F. A. Schaeffer, Neo-Modernismo ou Cristianismo? (São Paulo: Ação Bíblica do Brasil e Livraria Editora Evangélica, s/ data) 33-34. Veja, e.g., K. Barth, Church Dogmatics (Edimburgo: T & T Clark, 2ª edição, 1986) I.i: 198-227.
6 Uma das principais heranças do Iluminismo foi o conceito de autonomia do ser humano, com sua diversidade de expressões contemporâneas: existencialismo, pragmatismo, niilismo etc. Para um estudo mais detalhado, veja J. D. Woodbridge, “Some Misconceptions of the Impact of the ‘Enlightenment’ on the Doctrine of Scripturae”, em D. A. Carson e J. D. Woodbridge (eds.), Hermeneutics, Authority and Canon (Leicester: IVP, 1986) 237-270. Veja também F. A. Schaeffer, How Should We Then Live? (Westchester: Crossway Books, 1976) 120-166.
7 Novo Dicionário Aurélio, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1ª edição, 11ª impressão, 1975).
8 Veja VS I:1 (março 1991) 7-9.
9 Veja N. T. Wright, “How Can the Bible be Authoritative?” Vox Evangelica V:21 (1991) 15-16.
10 O processo de registro da Palavra não é descrito por Paulo. Veja 2Pedro 1.20s.
11 O Dr. Charles C. Ryrie forneceu uma lista dos supostos erros mais apontados, em conferência proferida no Brasil, em julho de 1982. A lista soma apenas 10 discrepâncias aparentes no AT e 10 no NT. Para um estudo detalhado do assunto, veja J. M. Boice (ed.), O Alicerce da Autoridade Bíblica (São Paulo: Vida Nova, 1982), especialmente os capítulos 3 e 6; H. Lindsell, The Battle for the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1976) 161-184; e N. L. Geisler (ed.), Inerrancy (Grand Rapids: Zondervan, 1979).
12 Para um excelente estudo detalhado sobre o autotestemunho da Bíblia, veja W A. Grudem, “Scripture Self-Attestation” em D. A. Carson e J. D. Woodbridge (eds.) Scripture and Truth (Leicester: IVP, 1983) 19-59.
13E.g., no cumprimento de profecias do AT no NT, especialmente as profecias sobre o Messias e Sua vinda.
14Veja a excelente discussão sobre contextualização e teologia em B. J. Nicholls, Contextualização: Uma Teologia do Evangelho e Cultura (São Paulo: Vida Nova, 1983).
15 Para um ótimo resumo, ainda que panorâmico, veja E. R. Mueller, “O Método Histórico-Crítico – Uma Avaliação” (Apêndice 2), em G. D. Fee e D. Stuart, Entendes O Que Lês? (São Paulo: Vida Nova, 1984) 237-318.
16 G. Tyrrell, Christionity at the Crossroads, 44, citado por A. N. S. Lane, The Lion Concise Book of Christian Thought (Tring: Lion, 1984) 175, tradução livre.
17 Veja, e.g., J. L. Segundo, Libertação da Teologia (São Paulo: Loyola, 1978), principalmente os capítulos 1 e 4; L. Boff, Jesus Cristo Libertador (Petrópolis: Vozes, 1972, 12ª edição) 222-234, com ênfase na Cristologia da Teologia da Libertação.
18 G. Gutiérrez, Teologia da Libertação (Petrópolis: Vozes, 1986, 6ª edição) 18.
19 Veja, e.g., J. Sobrino, Christology at the Crossroads (Nova Iorque: Orbis, 1978) xv-xxvi.
20 Bultmann fez interessantes comentários sobre a questão das pressuposições do intérprete da Bíblia na sua famosa monografia “Será possível a exegese livre de premissas?” (1957), R. Bultmann, Crer e Compreender: Artigos Selecionados (São Leopoldo: Sinodal, 1986) 223-239. A perspectiva de Bultmann, porém, é tendenciosa para o existencialismo “heideggeriano”.
21R. Cavalcanti, Igreja: Comunidade da Liberdade (Niterói e São Paulo: VINDE e SEPAL, 1989) 22.
Cavalcanti, op. cit., 40.
22Bong Ro observa em Theological News 22:3 (julho-setembro, 1991; boletim da World Evangelical Fellowship) que muita teologia asiática tem resultado em sincretismo, acomodação ou situacionismo. O problema fundamental, comenta 23Bong Ro, é a falta de uma hermenêutica bíblica.
24Novo Dicionário Aurélio (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, 1ª edição, 11ª impressão).
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