“A não ser que seja convencido pelo testemunho da Escritura ou por
argumentos evidentes... – a minha convicção vem das Escrituras a que me
reporto, e minha consciência está presa à palavra de Deus – nada consigo nem
quero retratar, porque é difícil, maléfico e perigoso agir contra a
consciência. Deus me ajude, Amém.”1
As palavras de Martinho Lutero ecoam pelos séculos como um
testemunho, dos mais eloquentes, da atitude de submissão e obediência
incondicionais à Palavra de Deus escrita. De fato, os cristãos evangélicos têm
uma herança muito preciosa de respeito e consideração à Bíblia e ao seu ensino.
Homens como Lutero, Melanchton, Zwinglio, Calvino, Knox e outros reformadores
basearam todo o seu esforço e obra num fundamento comum: Sola Scriptura,
i.e., “só a Escritura”, somente ela tem a autoridade e o direito de ser
obedecida – não o papa, bispos, concílios ou tradições.
Existe hoje, nas igrejas, uma forte tentação no sentido de negligenciar a
herança histórica, exatamente na área fundamental da bibliologia, quer pela
falta de preparo bíblico-teológico de grande parte da liderança, quer pelo
favorecimento generalizado do valor e autoridade relativos da experiência sobre
a Bíblia. Em anos recentes temos observado uma sutil, mas inquietante,
transferência da submissão à autoridade da Palavra de Deus escrita para a
“palavra” oral de pastores e líderes evangélicos populares. Alguns desses
procuram remeter o povo evangélico de volta à Bíblia. Muitas vezes, no entanto,
verificamos que o povo evangélico, consciente ou inconscientemente, favorece o
ambiente em que alguém é capaz de suas próprias interpretações e/ou opiniões
com um “assim diz o SENHOR”, que isenta a maioria menos avisada da tarefa,
sempre salutar, de examinar as Escrituras “para ver se as causas eram de fato
assim” (At 17.11c).
Ataques frontais, ou camuflados, à veracidade e integridade das Escrituras têm
sido frequentes ao longo da história, bem como as releituras ideológicas que
rejeitam a compreensão histórico-gramatical normal (literal) do texto bíblico.
Nos dois primeiros números de Vox Scripturae, o Prof. Richard Sturz e o Dr.
Russell Shedd trabalharam com alguns dos aspectos mais modernos e relevantes
nestas áreas.2 Nosso intuito neste artigo é de levar a
discussão adiante, traçando algumas considerações sobre a questão atual da
qualidade normativa da Bíblia e suas implicações para a realidade evangélica
brasileira.
I. A CRISE ATUAL
A difícil fase que a sociedade brasileira (e latino-americana) tem
vivenciado também afeta as igrejas. Em primeiro lugar, é claro, pelo simples
fato de passar a igreja pelos mesmos problemas práticos que todo e qualquer
segmento da sociedade enfrenta, principalmente na área econômico-social. Em
segundo lugar, porque a igreja tem sido constantemente influenciada em sua
identidade, organização e missão por certas premissas filosóficas inerentes à
mentalidade que caracteriza a segunda metade do século XX. Um exame, por
superficial que seja, dos conceitos mais populares de autoridade bíblica
encontrados nas igrejas revela tendências perigosas do rumo ortodoxo (grego:
“opinião reta”) que deveria orientar a igreja na sua compreensão do papel
normativo das Escrituras.
l. A Percepção Restritiva da Autoridade Bíblica
A autoridade bíblica limita-se a assuntos de natureza espiritual (ou
religiosa), tais como o culto, a escola dominical, a evangelização e programas
da igreja. Quanto à área moral, ética ou financeira, o que decide é a
experiência comum da comunidade cristã, modelos ou padrões pragmáticos (do tipo
“o que funciona é O que é certo”), o conselho de “autoridades” na área ou
simplesmente as tendências do momento. Naturalmente, a pressuposição subjacente
deste conceito de papel normativo da Bíblia é a de que existe uma dicotomia
entre aquilo que se torna como “espiritual” e o que é tido como “profano”. Tal
dualismo, porém, tem mais afinidade com o neoplatonismo dos primeiros séculos
da igreja cristã (distinção absoluta entre “espírito” e “matéria”) do que com o
ensino do Novo Testamento (cf. Mc 7.1-23; 1 Co 10.31; Cl 3.17).
2. A Visão Impressionista da Autoridade Bíblica
Só é determinativo ou autorizado no texto bíblico aquilo que provoca no
leitor alguma “impressão” ou reação forte. O leitor tende a igualar a mensagem
de uma passagem bíblica com os pensamentos que ocupam sua mente enquanto ele a
lê.3 Esta perspectiva parece ser das mais populares, pois
encontra respaldo na cosmovisão geralmente subjetivista e individualista do
homem brasileiro.4 Além disso, também corresponde, de certa
forma, à noção neo-ortodoxa de um encontro existencial com Deus mediado por um
texto bíblico qualquer que “se torna a palavra de Deus” para o leitor.5
3. A Concepção Dogmática da Autoridade Bíblica
A Bíblia é considerada detentora de autoridade, mas somente nos aspectos
que favoreçam ou sejam convenientes a uma posição doutrinária que este ou
aquele grupo ou movimento promove. Listas de versículos como texto-prova desta
ou daquela doutrina são apresentadas sem maiores cuidados quanto ao contexto de
cada passagem, seu propósito original e sua compreensão dentro do livro ou
autor bíblico onde se encontra. O conteúdo do famoso dito, “texto fora de
contexto é pretexto”, ainda que teoricamente repudiado pela maioria de nós,
acaba, muitas vezes, sendo a descrição mais apurada da prática hermenêutica de
muitos de nós. O grande problema aqui é saber o que fazer com todo o resto das
Escrituras que continua detendo autoridade, mas que, aparentemente, não se
encaixa com o sistema doutrinário defendido. O “reducionismo”, como método
hermenêutico, tem caracterizado a exegese histórico-crítica (liberal), mas
também muito daquilo que se denomina interpretação ortodoxa da Bíblia. Basta
olhar à nossa volta e verificar o que, por exemplo, têm feito os proponentes do
chamado “evangelho da prosperidade”. As passagens que falam de sucesso material
e bem-estar físico são convenientemente requisitadas como alicerces do ensino
proposto; contudo, as que falam de sofrimento físico, perseguição e estilo de
vida simples do crente são, quando muito, “desmitologizadas” ou relegadas a
segundo plano, se não totalmente negligenciadas.
Por trás destas perspectivas deficientes e suas implicações está, é claro, uma
visão fragmentada da Bíblia: não se entende as partes pelo
todo nem vice-versa. Mas, acima de tudo, este é um problema de atitude em
relação à Palavra de Deus, principalmente no que concerne ao propósito para o
qual ela nos foi dada “por escrito” e nas formas nas quais ficou registrada.
Analisaremos, a seguir, quais os componentes necessários e apropriados para uma
visão equilibrada, mas sobretudo fidedigna, da autoridade e do consequente
papel normativo das Escrituras.
II. RESGATANDO O CONCEITO DE AUTORIDADE E PAPEL NORMATIVO DAS ESCRITURAS
Há hoje um forte preconceito quanto à ideia de “autoridade”. Vivemos num
mundo pós-iluminista (do movimento europeu dos séculos XVII e XVIII que deu
origem à ciência moderna) e, como tal, “autonomia” é a palavra de ordem, não
autoridade. O homem, colocado no centro do universo, e a razão humana, elevada
à medida de todas as coisas, tornam extremamente difícil a ideia de autoridade
extrínseca (imposta de fora do indivíduo).6 A história recente
do Brasil também contribui para esse preconceito. A mudança do regime militar
“autoritário” para a democracia de “liberdade” tem trazido consigo uma infeliz
confusão de “autoridade” com “autoritarismo”. O “autoritarismo” é o abuso de
poder, a exigência de submissão sem, necessariamente, respaldo na verdade ou na
moral, sem critério objetivo, a não ser a manutenção do status de poder
absoluto. Mas, isso não é “autoridade” nem o exercício dela. Entretanto, quando
se fala de autoridade bíblica, parece que algo dessa natureza vem à mente de
muitas pessoas; afinal, pensam elas, “autoridade” deve ser o antônimo de
liberdade e democracia. Autoridade, ao contrário, deriva seu status com base em
algum critério objetivo. Segundo o dicionário, autoridade é “o direito ou poder
de fazer-se obedecer, dar ordens, tomar decisões, agir”.7 No
que se refere à autoridade bíblica, este “direito” ou “poder” de fazer-se obedecer
decorre fundamentalmente de três premissas históricas: 1) a natureza da
revelação bíblica em contraste com a literatura de origem meramente humana; 2)
o autotestemunho da Bíblia quanto à sua veracidade e fidedignidade como
revelação de Deus; e 3) os efeitos historicamente verificáveis da aplicação do
ensino peculiar da Escritura à vida e estruturas humanas.
1. A Natureza da Revelação Bíblica
O Prof. Sturz já tratou, no primeiro número de VS, da questão do
conceito de inspiração plenário-verbal e das alternativas oferecidas ao mesmo.8
O que desejamos destacar aqui é, mais particularmente, o fenômeno das
Escrituras, i.e., de sua qualidade intrínseca de ser a Palavra de Deus escrita.
O que, afinal, diferencia a Bíblia de outros livros? Literalmente falando, como
pode um livro, cuja característica básica é ser uma narrativa de “história
antiga”, ser ao mesmo tempo a revelação de Deus?
Toda autoridade pertence a Deus. A própria Bíblia vê a autoridade como
totalmente concentrada em Deus (e.g., Is 40; Mt 28.18). E é somente a partir
desta constatação que podemos afirmar que as Escrituras têm autoridade; i.e.,
desde que toda autoridade pertence exclusivamente a Deus, então Ele mesmo de
alguma maneira conferiu Sua autoridade à Bíblia.9 Essa
delegação de autoridade pode ser ilustrada logo no primeiro capítulo de
Gênesis, quando Ele, proferindo a sua Palavra, diz isto ou diz aquilo, e as
coisas acontecem (Gn 1.3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26). Da mesma forma, os
profetas, Seus agentes humanos, são equipados pelo Espírito Santo e enviados ao
povo. Sua autoridade é delegada por Deus. Por isso eles dizem “assim diz o
SENHOR”, ao anunciar suas mensagens de julgamento e salvação da parte de Deus.
Da mesma forma, aqueles que testemunharam a vida e a obra do Messias depois escreveram
o que escreveram para que fosse documentação que servisse de alicerce para a
igreja (At 2.42; Ef 2.20).
Portanto, a autoridade dos apóstolos, tanto na palavra falada quanto na escrita
(e.g., 2 Pe 3.15s.), também é autoridade divina.
A autoridade delegada, porém, reside especificamente na Palavra, pois é a
Palavra de Deus. Neste sentido, também há uma certa confusão quanto ao conceito
de inspiração. Na realidade, o que é inspirado não é O escritor humano, mas sim
o texto bíblico: “Toda Escritura é inspirada”. O termo “inspirada”
(theopneustos), de 2Timóteo 3.16, expressa, mais do que qualquer outra coisa,
que o “produto final” de todo o processo, a Escritura, é o que possui a
qualidade de ser Palavra de Deus e, portanto, autoridade divina. Os escritores
humanos foram “conduzidos” (pheromenoi) pelo Espírito Santo para que
registrassem o texto “soprado por Deus”, o qual possui a autoridade de Palavra
de Deus e cuja prerrogativa é ser obedecido (2 Pe 1.21, cf. 1.19).10
2. O Autotestemunho da Bíblia
Há uma impressionante coerência entre os diversos livros bíblicos. (Às
vezes nos esquecemos de que a Bíblia é, na verdade, uma pequena biblioteca
composta de vários livros.) Aproximadamente quarenta escritores de culturas,
línguas e contextos vivenciais diferentes escreveram seus livros, cobrindo um
período de mil e quinhentos anos. Por mais intrigantes que sejam as poucas e
aparentes discrepâncias11 entre eles, não é possível evitar
uma reação de pasmo diante do “fenômeno” das Escrituras. Mas o método de
revelação de Deus para os escritores humanos não é muito discutido na Bíblia.
Há, por exemplo, pesquisa histórica (Lc 1.1-4), lembrança (Jo 14.26), ditado
(Ap 1.11-3.22), visões (2 Co 12.1-4) e o uso de bom julgamento (1 Co 7.12).
Uma vez tendo reivindicado ser o produto da ação soberana de Deus, as
Escrituras são coerentemente precisas em afirmar que tudo o que dizem é
verdadeiro, pois possuem autoridade divina. Seria muito fácil multiplicar as
passagens do AT e do NT que presumem direta ou indiretamente tal convicção.12
Para o nosso propósito basta mencionar apenas alguns aspectos relativos ao NT,
a título de ilustração:
a. Jesus reconheceu o AT como Escritura:
* Inspiração – Marcos 12.36 (cf. Sl 110.1);
* Historicidade – Adão e Eva (Mt 19.4s.), dilúvio (Mt 24.37), Jonas (Lc 11.32),
sarça ardente (Lc 20.37);
* Cumprimento – Mateus 5.18
* Infalibilidade – João 10.35
b. Jesus reivindicou autoridade para as suas próprias palavras:
* Importância – Marcos 8.38; Mateus 7.24-27;
* Eternidade – Mateus 24.35;
* Papel normativo – Mateus 5.22, 28, 32, 34, 39, 44; 28.18-20
c. Paulo reconheceu o AT como Escritura:
* Inspiração – 2 Timóteo 3.16;
* Personificação da Escritura – Romanos 9.17
d. Paulo reivindicou autoridade divina para as suas palavras:
* Reveladas pelo Espírito – 1Coríntios 2.13;
* Normativas – 1Coríntios 14.37;
* Mensagem evangélica – 1Tessalonicenses 2.13; Gálatas 1.6-9
e. Pedro reconheceu o AT como Escritura:
* O registro da revelação divina – 2Pedro 1.19-21
f. Pedro
reconheceu as cartas de Paulo como Escritura:
* Mesmo caráter do AT – 2Pedro 3.15s.
Ainda de muitas outras formas a Bíblia reivindica e atesta sua
veracidade e fidedignidade.13 A discussão moderna sobre
bibliologia tem levado muitos evangélicos, em suas tentativas de defesa da
integridade da revelação bíblica, a se refugiarem numa conceituação que destaca
de forma “negativa” o que as Escrituras enfatizam de forma “positiva”. Os
adjetivos “infalível” e “inerrante” têm sido empregados com tanta intensidade e
veemência que, às vezes, parece que falta espaço apropriado para se dizer
“verdadeira”, “fidedigna”, “confiável”.
Pode parecer, à primeira vista, uma mera questão de semântica. Mas vai muito
além disso. É também uma questão de atitude. Não precisamos, nem devemos, ficar
numa “retranca” apologética. Se cremos que, de fato, Deus é verdadeiro, e é
mentiroso todo homem (Rm 3.4), então é imperativo que apresentemos Sua mensagem
ao homem moderno com a convicção de que é derivada da única fonte verdadeira,
autorizada e normativa.
3. Aplicação e Efeitos do Ensino Bíblico
A compreensão de que as Escrituras são a revelação de Deus e de Sua
vontade aos homens e a verificação de sua auto- reivindicação de ser verdadeira
e fidedigna, ao apresentar tal revelação, trazem uma implicação inescapável. As Escrituras
são normativas para a análise da realidade. Sua aplicação, seja qual
for o contexto, tem sido historicamente determinada a partir do texto bíblico
como o primeiro passo do processo, não o contrário. É claro que o contexto é
importante, à medida que orienta o tipo de abordagem, os aspectos prementes e
relevantes que devem ser examinados e interpretados. A mensagem, porém, já está
de antemão estabelecida e determinada no contexto bíblico. 14
As tentativas de inverter esse processo também podem ser historicamente
verificadas, bem como seus resultados. Nos últimos cento e cinquenta anos, foi
a teologia do liberalismo “clássico” que mais explicitamente direcionou seus
esforços no sentido de interpretar o texto bíblico e sua mensagem da
perspectiva situacionista. Foi, e tem sido em suas formas mais modernas,
nitidamente guiada por premissas filosóficas e antropológicas. Sua metodologia
é caracterizada por um nítido anti-sobrenaturalismo e reducionismo
histórico-crítico, resultado do Iluminismo.15 Um comentário
elucidativo foi feito por G. Tyrrell, teólogo católico do início do século, a
respeito da cristologia, com evidentes contornos “humanistas” de um dos últimos
grandes expoentes do liberalismo, Adolf von Harnack. Ele disse: “O Cristo que
Harnack vê, olhando para trás pelos dezenove séculos de trevas católicas, é
apenas um reflexo da face protestante liberal, vista no fundo de um poço”.16
Na atualidade é a Teologia da Libertação que tem preconizado, mais do que
qualquer outro movimento, o contexto sócio-religioso como o ponto de partida
para a reflexão teológica. O texto bíblico é sempre um segundo passo no
processo hermenêutico.17 Nas palavras de Gutiérrez, um dos
pais do movimento, a Teologia da Libertação vê “teologia” como reflexão crítica
sobre a práxis”. A “ortopraxia”, em lugar da “ortodoxia”, tem sido seu
“grito de guerra”. De fato, não há como negar o valor de certos questionamentos
levantados pela Teologia da Libertação, quando esta diz, por exemplo, que a
teologia “ocidental” tradicional tende a preocupar-se mais com abstrações e
“teologizações” do que com a prática cristã, a resolução cristã dos problemas
do homem.18 Mas, ainda que a entrada no círculo
hermenêutico (nome dado ao processo de interpretação, no qual se
verifica uma constante checagem de conclusões em relação ao texto bíblico)
possa dar-se a qualquer altura do processo, seja no lado do texto quanto no
lado do contexto, a Escritura ainda deverá manter seu lugar normativo e
reformular, sempre que necessário, a nossa pré-compreensão do texto bíblico e
sua relevância para a realidade. 20
Quando olhamos para o NT, por exemplo, e perguntamos sobre a ocasião (o Sitz im
Leben) que motivou a produção de seus diversos escritos, somos obrigados a
concluir que a teologia do NT nos é mediada por situações vivenciais concretas
– tanto nos evangelhos, cartas e Atos quanto no Apocalipse. A teologia que
encontramos no NT é, portanto, dinâmica (ativa), não estática ou abstrata,
divorciada de seu contexto existencial. Nossa responsabilidade, como
intérpretes e exegetas, por conseguinte, é de articular essa teologia que foi
dada numa situação concreta, não no abstrato, para outra situação concreta,
aquela que o cristão brasileiro vive hoje. Tal tarefa hermenêutico-teológica
não é fácil. Ela exige, prioritariamente, uma grande compreensão do texto
bíblico no seu contexto original, a fim de que sua aplicação à realidade atual
seja coerente com seu propósito. É essa fusão de “horizontes”, da perspectiva
do escritor bíblico e do intérprete moderno, que orientará a missão e o papel
da igreja numa determinada situação.
Acima, porém, de uma mera questão de conhecimento acadêmico vem a necessidade
de compromisso sério do intérprete bíblico com a Palavra de Deus escrita.
Como evangélicos temos condições de responder relevantemente às questões que a
Teologia da Libertação tem tentado responder partindo de premissas equivocadas.
Mas não serão ideologias ou quaisquer outras premissas filosóficas, políticas
ou sociológicas que nos direcionarão na tarefa proposta. Concordo com Robinson
Cavalcanti quando este afirma que “devemos ser realistas e dizer que a
confiança na relevância dos ensinos bíblicos não resolve automaticamente certas
situações agudas”. 21 Entretanto, o reconhecimento de tal
fato, em vez de tirar nossa atenção da Palavra e transferi-la para as ciências
sociais, políticas ou filosóficas, deveria levar-nos a uma imersão ainda maior no
texto bíblico, a fim de descobrirmos quais são os parâmetros básicos que nos
nortearão diante de uma dada situação ou problema que a Bíblia não aborda
explicitamente. Qualquer proposta de “trabalho interdisciplinar”22
que objetive resultados sérios e fiéis à mensagem do evangelho, além de
resultados pragmáticos (ou utilitários), deve percorrer constantemente o
caminho de volta à Palavra para checar e reformular seus pressupostos e
conclusões.23
III. AS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS DO CONCEITO BÍBLICO DE AUTORIDADE E PAPEL
NORMATIVO DAS ESCRITURAS
O conceito de autoridade, analisado acima, traz consigo dois conceitos
práticos associados: submissão e normatividade.
A ideia de submissão, subordinação ou sujeição não é das mais populares na
atualidade – certamente pelas mesmas razões vistas acima quanto à questão da
autoridade (II.). Mas, uma atitude de submissão deve ser uma consequência
natural do reconhecimento e da aceitação da autoridade de alguém ou de alguma
coisa (a Constituição, por exemplo). Submissão à autoridade bíblica implicará
duas atitudes essenciais ao intérprete bíblico:
1) Respeito à voz do escritor bíblico, sem lhe impor pressuposições ou
preconceitos que lhe sejam estranhos. Na prática, isto significa que devemos
ler o texto levando em conta a personalidade, cultura, língua, propósito, temas
e ênfases específicos do autor humano da passagem que estamos estudando. Por
exemplo, enquanto é verdade que Mateus pode nos ajudar a entender muito do que
Marcos escreveu, ou vice-versa, o evangelista Marcos deve ser ouvido na forma
em que escreveu seu livro, atentando-se para os seus propósitos e ênfases no
evangelho. O mesmo se aplica a Mateus. É neste campo, o da exegese, que a
teologia bíblica opera.
2) Respeito à revelação bíblica como um todo. Isto pode parecer contrário ao
parágrafo acima, mas não é. Uma teologia bíblica não exclui a possibilidade,
nem a necessidade, de uma teologia sistemática. Ela simplesmente estabelece
certas diretrizes e limites à última. Nenhum esquema teológico deve ser imposto
ao texto, de modo artificial, de forma a encaixar no sistema aquilo que não lhe
seja conveniente ou mesmo que lhe seja contrário (como um quebra-cabeças, cujas
peças são forçadas a se encaixar pelo competidor impaciente). Entretanto, o
princípio da harmonia das partes em função do todo deve levar o intérprete a
testar suas conclusões em relação a qualquer texto das Escrituras com o todo de
seu ensino. Isto ele fará reconhecendo a unidade da revelação bíblica em seus
aspectos primordiais: Deus e seus atributos, pecados e suas consequências,
graça, encarnação, vida, morte e ressurreição do Filho de Deus, salvação e
santidade etc.
São exatamente essas duas atitudes ligadas ao conceito de submissão que, na
prática, apontam para a função normativa da Bíblia. Norma é “aquilo que se
adota como base ou medida para a realização ou avaliação de algo”24.
É somente com base nisso que a Bíblia pode ser a única regra de fé e prática.
Só a partir daí, também, que se pode desejar ver os sinais positivos de uma
doutrina bíblica, histórica e sadia da autoridade das Escrituras sendo crida e
vivida no meio do povo de Deus no Brasil:
– apreço e apego à Palavra escrita como critério exclusivo para reger a
vida dos crentes;
– exposição do texto das Escrituras como resultado do reconhecimento da
autoridade e do papel normativo da Bíblia por parte dos pastores e líderes. Se
a liderança evangélica levasse tão a sério a inspiração e autoridade da Bíblia,
como comumente se apregoa, estaria mais disposta a ouvir o texto e a pregar o
que ele diz, em vez de usá-lo como “trampolim” para ideias e opiniões próprias.
Isto se aplica a áreas tais como o sermão, o aconselhamento, a política, o
trabalho social etc.;
– mais importante ainda, uma mentalidade cristã haveria de surgir não somente
para contrapor a mentalidade secular que permeia a igreja, mas como estímulo e
equipamento essencial à santidade cristã (Cl 3.1, 2, 16, 17).
_____________
Notas bibliográficas
1 Martinho Lutero em Pelo Evangelho Eterno. Obras Selecionados de
Momentos Decisivos da Reforma (Porto Alegre e São Leopoldo: Concórdia e
Sinodal, 1984) 148, 149.
2 R. J. Sturz, “A Palavra que Prende e Liberta”, Vox Scripturae I:1
(março 1991) 3-10; R. P Shedd, “Hermenêutica Bíblica”, Vox Scripturae I:2
(setembro 1991) 3-11. Daqui em diante utilizaremos a abreviatura VS para Vox
Scripturae.
3 R. P. Martin, “Approaches to New Testament
Exegesis” em L H. Marshall (ed.) New Testament Interpretation. Essays on
Principies and Methods (Exeter: Paternoster, 1985) 221.
4 Veja, e.g., Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 21ª edição, 1989) 5-9. O autor traça o perfil do
brasileiro, destacando sua tendência histórica para a anarquia.
5 F. A. Schaeffer, Neo-Modernismo ou Cristianismo? (São Paulo: Ação
Bíblica do Brasil e Livraria Editora Evangélica, s/ data) 33-34. Veja, e.g., K.
Barth, Church Dogmatics (Edimburgo: T & T Clark, 2ª edição, 1986) I.i:
198-227.
6 Uma das principais heranças do Iluminismo foi o conceito de
autonomia do ser humano, com sua diversidade de expressões contemporâneas:
existencialismo, pragmatismo, niilismo etc. Para um estudo mais detalhado, veja
J. D. Woodbridge, “Some Misconceptions of the Impact of the ‘Enlightenment’ on
the Doctrine of Scripturae”, em D. A. Carson e J. D. Woodbridge
(eds.), Hermeneutics, Authority and Canon (Leicester: IVP, 1986) 237-270. Veja
também F. A. Schaeffer, How Should We Then Live? (Westchester: Crossway Books,
1976) 120-166.
7 Novo Dicionário Aurélio, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
(Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1ª edição, 11ª impressão, 1975).
8 Veja VS I:1 (março 1991) 7-9.
9 Veja N. T. Wright, “How Can the Bible be Authoritative?” Vox Evangelica
V:21 (1991) 15-16.
10 O processo de registro da Palavra não é descrito por Paulo. Veja 2Pedro
1.20s.
11 O Dr. Charles C. Ryrie forneceu uma lista dos supostos erros mais
apontados, em conferência proferida no Brasil, em julho de 1982. A lista soma
apenas 10 discrepâncias aparentes no AT e 10 no NT. Para um estudo detalhado do
assunto, veja J. M. Boice (ed.), O Alicerce da Autoridade Bíblica (São Paulo:
Vida Nova, 1982), especialmente os capítulos 3 e 6; H. Lindsell, The Battle for
the Bible (Grand Rapids: Zondervan, 1976) 161-184; e N. L. Geisler (ed.),
Inerrancy (Grand Rapids: Zondervan, 1979).
12 Para um excelente estudo detalhado sobre o autotestemunho da Bíblia,
veja W A. Grudem, “Scripture Self-Attestation” em D. A. Carson e J. D.
Woodbridge (eds.) Scripture and Truth (Leicester: IVP, 1983) 19-59.
13E.g., no cumprimento de profecias do AT no NT, especialmente as
profecias sobre o Messias e Sua vinda.
14Veja a excelente discussão sobre contextualização e teologia em B. J.
Nicholls, Contextualização: Uma Teologia do Evangelho e Cultura (São Paulo:
Vida Nova, 1983).
15 Para um ótimo resumo, ainda que panorâmico, veja E. R. Mueller, “O
Método Histórico-Crítico – Uma Avaliação” (Apêndice 2), em G. D. Fee e D.
Stuart, Entendes O Que Lês? (São Paulo: Vida Nova, 1984) 237-318.
16 G. Tyrrell, Christionity at the Crossroads, 44, citado por A. N. S.
Lane, The Lion Concise Book of Christian Thought (Tring: Lion, 1984) 175,
tradução livre.
17 Veja, e.g., J. L. Segundo, Libertação da Teologia (São Paulo: Loyola,
1978), principalmente os capítulos 1 e 4; L. Boff, Jesus Cristo Libertador
(Petrópolis: Vozes, 1972, 12ª edição) 222-234, com ênfase na Cristologia da
Teologia da Libertação.
18 G. Gutiérrez, Teologia da Libertação (Petrópolis: Vozes, 1986, 6ª
edição) 18.
19 Veja, e.g., J. Sobrino, Christology at the Crossroads (Nova Iorque:
Orbis, 1978) xv-xxvi.
20 Bultmann fez interessantes comentários sobre a questão das
pressuposições do intérprete da Bíblia na sua famosa monografia “Será possível
a exegese livre de premissas?” (1957), R. Bultmann, Crer e Compreender: Artigos
Selecionados (São Leopoldo: Sinodal, 1986) 223-239. A perspectiva de Bultmann,
porém, é tendenciosa para o existencialismo “heideggeriano”.
21R. Cavalcanti, Igreja: Comunidade da Liberdade (Niterói e São Paulo:
VINDE e SEPAL, 1989) 22.
Cavalcanti, op. cit., 40.
22Bong Ro observa em Theological News 22:3 (julho-setembro, 1991; boletim
da World Evangelical Fellowship) que muita teologia asiática tem resultado em
sincretismo, acomodação ou situacionismo. O problema fundamental, comenta 23Bong Ro, é a falta
de uma hermenêutica bíblica.
24Novo Dicionário Aurélio (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, 1ª
edição, 11ª impressão).
Retirado do site